A história do projetoO encontro
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São Paulo, alguns dias antes do Natal de 2011. De férias para reencontrar com um rapaz conhecido alguns meses antes, eu estou esperando por ele, na rodoviária onde tínhamos marcado o encontro.
O tempo passa, estou ficando preocupada. Se ele não vier, o que eu farei, durante um mês, sozinha em um país cuja língua nem conheço? Uma mensagem de desistência vem confirmar minhas dúvidas, e vou para o metrô, decidida a testar as poucas palavras de português que eu aprendi. A selva de uma megalópole de 20 milhão de habitantes me submerge e eu me deixo levar, para esquecer, e para aproveitar da oportunidade que se oferece a mim de conhecer um universo que eu nunca teria tido a coragem de enfrentar voluntariamente. Começo a sentir uma sensação de liberdade, e pela primeira vez em minha vida inicio uma viagem não planejada, guiada pela intuição e o acaso. Com a câmera no ombro, eu começo a imaginar o roteiro de um possível filme, mas também de um plano de vida. Depois de centenas de quilômetros e diversos encontros, eu conheço meu futuro protagonista, o homem do qual virei a compartilhar a vida. Marrero (Márcio de seu real nome) vive em uma ecovila e sonha com autogestão e auto-suficiência. De origem humilde e rural, ele acabou de se graduar em um curso universitário em agroecologia, e trabalha para o dono da Ecovila Viva. O projeto, iniciado alguns anos antes, foi abandonado e o jovem é responsável pelo seu resgate. |
Márcio na frente da cachoeira, dezembro de 2011
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Sem eletricidade, fogão a lenha, casinha de bambu, passamos Natal perto de uma cachoeira paradisíaca; é amor à primeira vista. A utopia parece ganhar vida. Finalmente, eu tenho que ir embora, mas prometo voltar seis meses depois, para ficar.
A instalação
Os meses passam. Eu aprendo Português, saio do meu trabalho dentro de uma associação cultural, consigo um visto permanente e vou me estabelecer na Ecovila Viva. Contei para meus amigos que estava emigrando de vez, porque acredito firme nesta alternativa concreta. Estar procurando um ideal significa também fazer escolhas: eu me desligo da luta urbana e dos companheiros sem documentos, embora eles tenham pouco apoio. Obtive uma residência de escritura de filme e uma pequena verba para um projeto de vídeo participativa. Apesar disso, meus pais estão preocupados: eles sabem que a juventude e seus sonhos são efêmeros. Não obstante, não estamos mais nos anos 70, mas em um mundo interconectado, e eu considero que nós poderemos aprender dos erros de nossos pais.
Além disso, a urgência da situação climática me parece um motor que nos ajudará a ultrapassar as dificuldades de tal mudança de vida. Quando comprometido em uma alternativa, não é mais possível imaginar voltar para trás. Como numerosos jovens, nós estamos desiludidos pelas brigas políticas, preocupados com a repressão contra as revoltas urbanas, e atraídos por outras escolhas, ligadas à terra, às culturas tradicionais, às pessoas que têm preservado saberes tradicionais, varridos em algumas décadas pela superprodução mortífera das multinacionais agrícolas. Não acreditamos na revolução, mas na multidão de experiências locais, autônomas, autogeridas, socialmente justas.
Porém, a luta ao lado dos imigrantes ilegais, em particular com as mulheres, clandestinas e duplamente estigmatizadas, me ensinou uma outra coisa: eu sei que há sistemas de opressão enraizados socialmente e culturalmente que provavelmente não desaparecerão espontaneamente, mesmo dentro de uma comunidade "alternativa". Eu suspeito que nós encontraremos uns papéis mais ou menos definidos e hierárquicos.
No entanto, desde o princípio, meu objetivo é achar ou participar da criação de um lugar onde possamos alcançar uma real autonomia de cada, sem negar a disparidade de nossas origens.
Alguns meses depois da minha instalação, enquanto eu estou realizando vídeos ligados à agroecologia (ver " blog Agroecovideo"), eu tenho vontade de testemunhar nossa vivência, de um modo pessoal e engajado, e realizo uma carta filmada, enviada a uma amiga: Carta para Solène.
Primeira partida
Alguns meses depois de minha chegada, temos que sair da Ecovila Viva: a terra não é nossa e nós estamos em conflito com o dono. Nós vamos viver na terra do Ricardo, um amigo de Marreco. Não tendo achado outro financiamento para meu projeto do filme e desejando testemunhar assim mesmo deste percurso pela imagem e o som, eu começo uma websérie, o Brasil, Márcio e eu? pela qual eu filmo e edito diariamente.
Certas problemáticas se desenham aos poucos: meu lugar como mulher, as dificuldades de organização coletiva, a propriedade da terra, as relações com a sociedade e o dinheiro. Pessoas do mundo inteiro seguem nossas aventuras, se interessam, compartilham reflexões, me dizem se inspirar delas. Este projeto é um work-in-progress: um rascunho, inacabado e imperfeito, mas sincero, que mostra as alegrias, dificuldades e decepções de nosso projeto.
Dez meses depois, o pai de Ricardo reinveste o terreno dele com um projeto de criação semi-intensiva. Desanimados, partimos novamente.
Os episódios de 1 até 6 acontecem no Ricardo.
Algumas imagens extraídas dos primeiros episódios, em Rio Preto, Minas Gerais
Rio Pomba
Em abril de 2014, chegamos em Rio Pomba, cidade de Minas Gerais majoritariamente rural, onde a presença de uma universidade federal que propõe um curso de agroecologia atrai numerosos jovens que têm objetivos semelhantes aos nossos. Marreco estudou aqui e conhece todo o mundo. Ele e seus colegas, que pertenceram à segunda turma do curso desde sua criação (em 2006), iniciaram um movimento de êxodo urbano local. Desde então, o êxodo aumentou, até um ponto onde está ficando difícil até mesmo de achar lugar para morar no campo. Uma parte dos estudantes de agroecologia mora na área rural, alugando casas dos agricultores locais.
Na nossa chegada, várias casas ainda estão disponíveis em uma pequena vila situada a 3 kms da faculdade. A maioria pertence a Zé Carlos, produtor de leite, e Fatinha, a esposa dele. Outros estudantes ocupam as casas vizinhas. A eletricidade e a água faltam com frequência e batizamos a vila "Complexo do Zé". Se reivindicando ao lado dos pobres em lugar dos fazendeiros, o Complexo se torna um lugar engajado, representativo da esfera alternativa de Rio Pomba. Aqui, convivem pessoas muito diferentes e de todas as origens, conectadas por alguns objetivos comuns, em particular a agroecologia - uma ciência que mistura técnicas tradicionais e modernas, a ecologia com as lutas sociais e políticas.
Algumas semanas depois de nossa chegada, nós achamos um terreno de 4ha, que compramos junto com um casal de estudantes em agroecologia. Aqui, tudo está para ser feito. A propriedade está coberta com 80% de floresta, situada ao topo de um morro no final de uma estrada de chão. Nenhuma infra-estrutura, nada de eletricidade, mas um riacho que corre abaixo: nossa primeira riqueza. Não importa, nosso objetivo era exatamente começar do marco zero.
O Complexo
Enquanto as primeiras casas estão sendo construídas, permaneceremos no Complexo, que também é um espaço de experimentações práticas onde cada um criou sua hortinha, abundante de diversidade. Um tipo de contra modelo que os jovens esperam implementar.
No fundo, as montanhas de Minas Gerais, cobertas de pastos amarelos quase não perturbados por alguns toques de floresta escassos, revelem as conseqüências da monocultura de gado. Marreco conseguiu reproduzir um tipo de microclima fresco e úmido no pedaço de terra adjacente a nossa casa, plantando espécies de tamanhos e ciclos de vida diferentes. Porém, nossa horta ainda não é muito produtiva; a autonomia alimentar é um longo processo.
Também é no Complexo que seguimos, na televisão, no rádio e na Internet, os eventos políticos notáveis e a divisão ocorrendo no país desde a reeleição da Dilma em 2014 seguido pelo impeachment em 2016. O modo como a mídia e a burguesia tratam a imagem da esquerda e dos movimentos sociais, mostrados como ladrões, enquanto os membros do atual governo são quase todos envolvidos em escândalos de corrupção, nos parece característica de um conservadorismo que valoriza a preservação de classes sociais e de um capitalismo selvagem contra qual lutamos ativamente. Uma oportunidade também para evocar as verdadeiras lutas que são importantes para nós: o agroecologia, a reforma agrária, o movimento dos sem terra e dos indígenas.
Entre nós surgem também certas divergências: é necessário lutar a um único nível local, construir nossa sociedade de um modo autônomo, se constituir como um modelo a seguir e ignorar o mundo político? Ou é essencial lutar ao nível das instituições, fazer mudar as leis, e favorecer o acesso de um número maior de pessoas para um estilo de vida mais saudável? Será que não corremos o risco, se isolando do mundo, de reproduzir em uma escala menor as relações de dominação sociocultural às quais desejamos nos opor?
Nosso terreno e o projeto de comunidade
Pouco tempo depois de nossa chegada, achamos um terreno para comprar, com um casal de estudantes de agroecologia. Temos o projeto de criar uma comunidade de vida e produção agroecológica. Uma amiga de uma cidade grande próxima comprou o terreno vizinho, maior do que o nosso. Ela pretende desmembrar parte dele que venderia a um segundo grupo. Pouco a pouco, outros jovens se unem com a ideia de se juntar a um projeto coletivo.
Nosso sonho de comunidade começa a tomar forma. Os trabalhos progridem de acordo com as estações do ano, transformando a visão recorrente do nosso lado do morro. Naturalmente, encontramos dificuldades na organização. Cada um chegou com objetivos idealizados, até mesmo utópicos, e algumas pessoas se desiludem rapidamente. É necessário estabelecer acordos, pôr nossos objetivos em comum, conseguir diferenciar os interesses individuais e coletivos.
Me parece que hoje o coletivo deve estar presente como uma necessidade mais do que como um objetivo a alcançar a todo custo. Nós compartilhamos um terreno, infra-estruturas, gostos e certos objetivos, como o do respeito de um estilo de vida socialmente justo e ecologicamente sustentável. Certas tarefas devem ser definidas coletivamente de acordo com as necessidades do grupo (relacionadas principalmente às instalações no terreno - estrada, água), e o resto pode ser escolhido de forma individual de acordo com os ritmos de cada um. Deste modo, cada pessoa é responsável pela própria vida, encontrando no coletivo um apoio e não um constrangimento.
O coletivo de Rio Pomba
Ao nosso redor, está se formando um coletivo mais largo, juntando vários jovens e grupos de pessoas de Rio Pomba, como também agricultores locais em transição agroecológica. Todos os domingos, o coletivo se encontra na terra de um dos participantes, para realizar um mutirão, tradicional das regiões rurais. Antigamente, era assim que os agricultores se organizavam, trocando serviços ao longo das estações, de acordo com as necessidades. Dentro do coletivo de Rio Pomba, cada um participa ao nível das suas capacidades dos diversos trabalhos (agricultura ou construção na maioria do tempo), e depois o grupo compartilha uma refeição, preparada em conjunto a partir de alimentos trazidos por cada um. Freqüentemente, o trabalho termina em música, improvisada com os instrumentos disponíveis no local.
O mutirão vai regularmente em nosso terreno, ajudando no progresso de nossa casa. Eu observo muitas vezes uma distribuição das tarefas por gênero que costuma me irritar um pouco, mas já encontrei uma forma de lidar com isso: agora trago comigo minhas ferramentas pessoais, assim eu sou livre de escolher minhas atividades.
Este coletivo é certamente o que permite a nosso projeto de progredir apesar das discordâncias internas. Ao contrário de uma ecovila que às vezes se constrói se isolando do mundo, nosso projeto se une à realidade social e política atual. Ele reune numerosos grupos e famílias, de idades e origens diversas.
Cada vez mais pessoas entram em contato com o coletivo, do qual eles ouvem falar pelo boca a boca ou pela internet. Eles esperam viver uma vivência alternativa e adquirir experiência prática. As reflexões deles realçam os questionamentos característicos das pessoas em busca de uma transição para uma vida mais simples e mais coerente, cuja visão freqüentemente é idealizada.
Entre as visitas, recebemos também meus pais, curiosos apesar das relutâncias iniciais deles de ver a evolução de nosso projeto. Desde o princípio da minha aventura, eles questionaram minhas escolhas, muitas vezes de forma bem pragmática: o que faremos se nós separarmos? Será que a experiência é sustentável a longo prazo? Durante a última visita deles, embora achando nossa casa no Complexo bastante desconfortável, eles escutaram nossos argumentos, e finalmente elogiaram a força do movimento de todos esses jovens engajados, admitindo que nossa época é diferente do tempo da juventude deles.
Marreco e eu
Fortes de nossas duas experiências e fracassos prévios, ficamos doravante cuidadosos e não desejamos pular etapas. A propriedade da terra nós parecia um dado inicial essencial para o projeto; já é um peso a menos para nós dois.
Depois do primeiro ano dedicado ao desenvolvimento das instalações coletivas no terreno (instalação de um carneiro hidráulico, trabalhando com a força da água, construção de um barracão-cozinha e de um fogão a lenha, primeiras plantações), decidimos focalizar na construção da nossa casa. Já terminamos o telhado e estamos fazendo as paredes de pau-a-pique, aos poucos. Praticamente todos os materiais provem da terra, e Marreco administra os trabalhos pelos quais recebemos muito ajuda de pessoas do coletivo ou de visitantes de fora.
Durante estes trabalhos, nossa relação também evolui. Marreco e eu entramos regularmente em conflito. Eu encarno o aspecto racional e científico, enquanto ele defende a espontaneidade e os métodos tradicionais.
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Marreco é meu oposto: originário de uma família muito humilde da periferia de uma cidade grande; depois de dez anos como pintor e viajando na estrada vendendo artesanato e praticando graffiti, ele obteve em 2012 uma gradução em agroecologia. Hoje, ele organiza cursos, da aulas em escolas e ainda trabalha ocasionalmente como pintor. Possuir um pedaço de terra na qual ele pode cultivar de seu próprio jeito era o sonho dele por anos. O seu projeto a longo prazo é ser auto-suficiente, mas também desenvolver cursos de bioconstrução e agroecologia no terreno.
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